Manuel da Fonseca<br> – o poeta da planície grande
Nenhum outro autor, mais ou menos próximo dos nossos afectos, escreveu o Alentejo com a sagacidade, com a profundeza dúctil do olhar (por vezes desarmado) como Manuel da Fonseca o fez. A começar na poesia, espaço primevo dessa explanação metafórica do sensível, por onde o autor demoradamente se detém (para nosso prazer e sobressalto), inscrevendo as suas memórias da infância com a ternura de quem quer reter o tempo, esse tempo feliz e fugaz de todas as descobertas.
Nos 40 anos da publicação
de Um Anjo no Trapézio
Quando foi que demorei os olhos/sobre os seios nascendo debaixo das blusas/das raparigas que vinham, à tarde, brincar comigo?.... Esse canto da memória adolescente (e o combativo Mataram a Tuna, o descritivo e pungente das tragédias quotidianas em Domingo, e todos os poemas de Rosa dos Ventos que falam de gente viva e com estórias para contar; gente com história) ainda hoje nos estremece de emoção e de assombro pelo virtuosismo da fala, das imagens, da expressividade sintáctica como Manuel da Fonseca inscreve no nosso imaginário esse tempo, essa ambiência, essa atmosfera do Alentejo dos anos 1940.
Na poesia, primeiro e, depois, na sua obra ficcional, o autor de Tempo de Solidão, fala comovidamente de nós, percorre os nossos mais íntimos clamores porque, como escreveu Mário Dionísio no prefácio/estudo para a 1.ª edição dos Poemas Completos: é por aí, decerto, que a obra de Manuel da Fonseca atinge um valor de símbolo que excede o mundo pessoal do poeta, exprime um clima e nos faz compreender a aceitação invulgar e imediata que sempre a acolheu. Porque nos retrata. Porque ela sonha e grita, e, sonhando e gritando, sobretudo explica. Nos explica. Este modo de contar, de nos contar, a fala sensitiva que nos diz, sem nunca ultrapassar os limites distanciadores que balançam entre a coragem interventora e crítica sobre o real e a memória das gentes e dos espaços que povoam esse universo de um avassalador lírico (quase lorqueano), é único de ressonâncias rítmicas e tensões afectivas na poesia portuguesa do século XX, e não encontrou referentes similitudes nos poetas posteriormente revelados, tendo como eixo discursivo a coloquialidade, a emotividade e a denúncia. Talvez que Ruy Belo tenha andado por essas águas, mas sem o claro comprometimento interventor, sem o sensível que plana a pele desta fala penetrada pela memória, a solidariedade e a atmosfera mítica e sofrida que o Alentejo inscreveu na obra modelar de Manuel da Fonseca. Embora descubramos em Ruy Belo, esparsos sinais de denúncia (o meu país é o que o mar não quer; a miséria do meu país/contemplei-a ao natural), onde a coloquialidade confessional, as fremências interiores, as inquietudes da dúvida e da fé (um discurso de referentes pessoais, em diálogo com Deus, não dogmático, contudo) e as paisagens urbanas (mesmo que, por vezes, lhe adivinhemos um Ribatejo épico e solar em fundo moderatto), se constituem a sua respiração mais larga. Manuel da Fonseca assume a frontalidade do combate terreno, nesse chão dos homens, do humano, das injustiças e misérias que os assolam (miséria que ele também contemplou ao natural), para nos dar a ler uma paisagem polvilhada de personagens raros e incontornáveis, essa geografia do humano que nos respira e sofre, território só pelos homens, desapossados de Deus, percorrido em desassombro e fúria, sós perante a sua humana condição, como acontece, por exemplo, com os personagens de Seara de Vento; essa heróica Amanda Carrusca corpo seco e chato, só ossos, e o genro António Valmurado, acossados de fome e ventos adversos.
Do Largo para a Cidade Grande
Esteiros, de Soeiro Pereira Gomes, Casa na Duna, de Carlos de Oliveira e Barranco de Cegos, de Alves Redol, e Seara de Vento, de Manuel da Fonseca (de cuja 1.ª edição se cumprem 50 anos) formam o património de suporte do melhor que o nosso neo-realismo (na sua primeira e mais profícua fase, estética e ideologicamente coerente e criativa) produziu na ficção. Mas, em Manuel da Fonseca é ainda no conto (a par com a poesia), na estória breve, onde a frescura do seu verbo encontra espaço e altura de afirmação, onde perpassa a leveza de um singular modo de contar, uma destreza de ritmo e similidades fónicas, dos sintagmas correntes da suprema arte de contar a vida dos humilhados e ofendidos, inscrevendo-lhe, sem o detectável panfletário da indignação cutânea e inócua, os seus quotidianos amargos, as mágoas, os sonhos, o desespero, o patético e o lírico – elementos, a um tempo de respiração narrativa e ductilidade orgânica da sintaxe, incomuns na nossa prosa.
Saído do seu Alentejo, espaço mítico e elementar da sua escrita, de Cerromaior, de Aldeia Nova, de O Fogo e as Cinzas, Manuel da Fonseca parte à aventura pelo corpo complexo da cidade grande, descobrindo-lhe e desnudando-lhe seus subterrâneos húmus, suas leis rapaces de sobrevivência, sua usura, para nos contar em 7 contos sinfónicos (e digo sinfónicos, porque esta escrita alarga os territórios da língua, inaugura uma outra forma de dizer, é fala polifónica e de cambiantes metafóricos múltiplos, onde o riso e a dor, a sátira e argúcia crítica se conjugam), nesse livro belíssimo e, penso, ainda não suficientemente revelado, que é Um Anjo No Trapézio. É neste texto que Manuel da Fonseca renova a sua arte de contar e deixa, pelo espaço de um livro, o largo, que era o centro do mundo, os ambientes das feiras, das tabernas onde a voz dos homens cantava o desespero mordido de uma vida à míngua mas perpassada pela dignidade de a viver de pé, de navalhas e de vento, das suas memórias ardentes e sofridas, para penetrar a mãos ambas o lodo que percorre as margens da cidade grande. Com ele, com esse olhar atento de perscrutador de sombras, viajamos a cidade, sabendo-o ora magoado, ora desnudando-lhe o pícaro por onde subtis traços de tragédia oculta se insinuam – é assim, no conto que dá título ao livro, verdadeira obra-prima da arte de contar, por onde uma diegese de penumbras estua nos labirintos brumosos da casa onde Lídia e Noémia habitam, nas elipses que atravessam a narrativa para a tornar mais clara e adensar esse quadro crepuscular da condição humana (mas onde, paradoxalmente, a esperança ainda habita), e a tosse convulsa e continua de Luís no quarto dos fundos, que impregna o texto de uma dramaticidade sufocante.
Um mestre na arte de contar
No conto O Meu Amigo Espinha, a fala de Manuel da Fonseca exibe um registo mais solto, eivado de subtil humor que o autor utiliza com mestria para penetrar os lodosos esquemas de uma cidade sem alimento, vigiada e de esperança minguada como era a Lisboa de 1968 (data da 1ª. edição de Um Anjo No Trapézio). A Luva, segue o mesmo registo irónico sobre o real. Manhã Sem Dia, estua numa linguagem poética (de novo o grande poeta de Rosa dos Ventos, e Planície a reinventar-se) pelos territórios de uma linguagem intimista, coloquial e emotiva, ressonâncias sonoras a lembrar algumas das mais conseguidas páginas de Cerromaior cada vez, as ondas subiam até mais longe, pela duna. Com um referver assobiado de espumas, quase chegaram agora aos pés do homem que estava lá em cima deitado, a olhar para a aldeia. Em O Carrocel, retorna a um mais largo ritmo, à respiração mordaz (contudo, sofrida), ao olhar de lince sensível que transporta o peso principal desta colectânea. De resto, esse registo de sagaz potencial literário, esse manancial de figuras modelares da nossa literatura, está igualmente presente nos contos de O Fogo e as Cinzas, Aldeia Nova, e nesse esplendor da linguagem, rasante e vivo de mordacidade e inventiva, vibrátil e feliz (um retorno auspicioso ao seu chão alentejano) que está presente na crónica (outro dos registos que a mão hábil de Manuel da Fonseca desbrava com pertinaz engenho) que é A Lareira, nos Fundos da Casa Onde o Retorta Tem o Café.
Manuel da Fonseca é um mestre da arte de contar. Ao lê-lo, imaginamo-lo à mesa do café (seu espaço de criação primordial, porque território de tertúlia, de convívio, de cumplicidades; seu habitat natural – e, afinal, de toda uma geração que nos legou alguns dos melhores nacos da prosa e da poesia da literatura portuguesa, revelada a partir dos anos 40 do século XX: José Cardoso Pires, Augusto Abelaira, Carlos de Oliveira, Armindo Rodrigues, José Gomes Ferreira, Urbano Tavares Rodrigues, Baptista Bastos, Alexandre O’Neill) a contar anedotas, a falar dos pequenos títeres que invadem o nosso espaço respirável, dos sabujos, da cupidez – mas também da generosidade, dos afectos, da solidariedade, da luta. Essa fala coloquial, passa indemne para a lisura com que o autor de Cerromaior redefine os arquétipos para nos cantar a vida que pulsa, em voz pessoalíssima, no fulgor dos seus textos.